Vivemos num mundo hostil. Selvagem. Capitalismo selvagem. Homem sendo o lobo do homem, egocentrismo, morte, doenças. Sofrimentos nos marcam desde o início da vida. A crença em Deus seria um óbvio conforto para tudo isso, e, para alguém cuja vida já não apresenta boas perspectivas, a crença em Deus muitas vezes é o último ponto de apoio, de esperança e de alegria.
Muitas das pessoas que estão muito doentes desenvolvem o seu lado espiritual. Inclusive, um grande pregador (A. W. Tozer) disse:
“É duvidoso que Deus possa abençoar um homem grandemente até que Ele o tenha afligido grandemente”.
Ou, como disse C. S. Lewis
“Deus sussurra a nós em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nossas dores: elas são o seu megafone para acordar um mundo surdo”.
Diante dessas palavras, das nossas observações, e da nossa experiência, nos encontramos no grande perigo de concluir (ah, sempre as precipitações!) que a crença em Deus é oriunda do nosso desejo por alívio, em momentos de dor. Um leitor atento poderia até mesmo dizer: “Só pode ser isso! Como imaginar um Deus que clama quando temos dor, mas quando estamos no nosso normal, e nas nossas alegrias, aparece no máximo como um sussurro? Não pode ser!”
Engano duplamente lamentável, porque, além de negar a Deus, ainda comete o erro que tanto teima em atribuir aos religiosos: não age racionalmente. Desrespeita a razão. Comete falácia. A famosa e mui antiga falácia do cum hoc et prompter hoc, ou, em português claro e simples, “correlação não implica causação”.
Não é porque dois elementos ocorrem conjuntamente que possamos inferir que eles estejam conectados causalmente! Um exemplo torna a falácia mais óbvia:
1: “Quanto mais bombeiros combatem um incêndio...”
2: “... maior dano se observa.”
Conclusão: “Os bombeiros causam o dano".
Agora, basta substituir os elementos e teremos a falácia de que falávamos. “Quanto mais sofrimento se vê numa vida... mais a concepção de Deus se observa. Conclusão: O sofrimento causa o desejo por Deus”.
Ora, já vimos, portanto, que é falácia completa e das mais grosseiras. Mas há mais que se falar contra essa visão. Porque, embora isto que disse prove que não dá para provar que Deus é o resultado do sofrimento, muitos acreditarão ainda, afinal de contas, nem tudo se prova debaixo do sol. E, portanto, o texto continua. Mas eu creio que Deus predestinada o sofrimento, mas Ele não é a causa do sofrimento. Isso é difícil entender pela razão, mas eu entendo pela fé.
Será que faz sentido que o conceito de Deus resulte de um desejo por alívio? Será que faz sentido pensar que crer em Deus advém da necessidade de conforto, de vida eterna, e de aceitação?
Veja as palavras do apologista cristão Alvin Plantinga:
“Muitas pessoas não gostam em absoluto da ideia de um ser ONIPOTENTE, ONISCIENTE, MONITORANDO todas as suas actividades, que conhece cada um de seus pensamentos e JULGA tudo o que elas pensam ou fazem. Outras desgostam da FALTA DE AUTONOMIA consequente da existência de alguém perto de quem nós somos como POEIRA e CINZA, e a que devemos VENERAÇÃO e OBEDIÊNCIA.”
O conceito de Deus é um conceito muito complexo. Omnisciência, omnipresença, omnipotência, soberania, controle absoluto de todas as coisas, justiça (incluindo justa ira contra o mal), santidade e infinitude são elementos de que nem sempre as pessoas se lembram quando dizem “Deus”. Mas o Deus em que cremos é um Deus que necessariamente deve ter estes atributos. Eles são consequências directas da concepção de um Ser supremo.
O Deus em que cremos é aquele que pede que neguemos não só nossas riquezas, mas também nossos familiares e amigos mais íntimos, a favor dele (Lucas 14). Que estou dizendo, que neguemos a nossa própria vida. O Deus em que cremos é aquele que nos leva a dizer: “já não sou em quem vive, mas Cristo vive em mim”. O longo processo de mortificação do ego é doloroso, um tipo de sofrimento que todo o que recebe a Cristo é alertado de modo directo por suas próprias palavras. O Deus em que cremos é aquele que nos leva a dizer: “não tenho mais vontade, seja feita a Tua”.
O conceito de Deus é o conceito de aniquilação do ego, algo que ninguém neste mundo deseja por conta própria. Não só não é desejável, mas também é algo que naturalmente detestamos. Não somente porque ele ordena essa aniquilação, mas porque a própria contemplação Dele é a nossa aniquilação. Quando os textos da Escritura apresentam pessoas que tiveram uma experiência intensa em que viam a Deus, ela sempre usa palavras de aniquilação e terror: “Haveremos de morrer, porque vimos o Senhor”. Em coerência com isso, não devemos desprezar o testemunho geral dos que crêem, os quais dizem que fugiam de Deus, a ponto de não afirmarem que vieram a aceitar a palavra pelas próprias forças.
Nas palavras de João Calvino:
“Na medida em que não olhemos para além da terra, nós ficamos muito satisfeitos com nossa própria justiça, sabedoria, e virtude; nós interpelamos uns aos outros nos termos mais soberbos, e parecemos menores apenas que semideuses. Mas assim que começamos a elevar nossos pensamentos para Deus, e reflectir em que espécie de Ser ele é, e quão absoluta a perfeição da sua justiça, e sabedoria, e virtude, para as quais, como um padrão, nós somos obrigados a nos conformar, o que anteriormente nos deliciava por sua falsa aparência de justiça se tornará contaminada com a maior iniquidade; o que se nos impôs estranhamente sob o nome de sabedoria nos desgostará por sua tolice extrema; e o que se apresentou na aparência de energia virtuosa será condenada como a mais miserável impotência. Assim estão distantes essas qualidades encontradas em nós, as quais parecem mui perfeitas, em relação à pureza divina. Daí aquele terror e assombro com os quais, de acordo com o que a Escritura nos relata uniformemente, os santos foram atingidos e esmagados quando quer que contemplassem a presença de Deus (...) Eles são, de certa maneira, tragados e aniquilados.”
Sem dúvida, Deus é um Deus de amor, de amor supremo e infinito para com os eleitos. Como disse C. S. Lewis, “Deus é tanto o único conforto, como também o supremo terror: a coisa de que mais precisamos e a coisa de que mais queremos nos esconder”.
Quero propor uma nova visão do sofrimento. Deus está bastante presente no sofrimento porque é nele que nosso ego baixa a guarda, é nele que nosso ego se parte, se enfraquece, é nele em que realmente nos tornamos vulneráveis a Deus. Não é que Deus só grita no sofrimento: é nós que só abrimos o ouvido quando sofremos.
Para fazer um último ataque à visão de um conceito de Deus resultante do sofrimento, vou deixar uma pergunta: se o que queremos é conforto e paz, por que não surgiu, ao longo desta História de sofrimento, apenas o conceito de uma futura vida em paz, tranquilidade, e vida eterna? Porque apenas não nos projectamos mentalmente para um novo mundo, onde haverá delícias e contentamento? Isso não apenas seria mais simples do que conceber um Ser pessoal, supremo, com todos os atributos de perfeição máxima, e com todas as implicações destes para a vida humana? A não ser que haja em nosso coração um desejo puro e independente pelo Ser, de modo dissociado de um desejo por alívio, não vejo por que o conceito de Deus surgiria do sofrimento.
Soli Deo gloria
1 comentários:
Grande Artigo!
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