Luan Marçal

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Ciência e Religião

A religião não é boa, nem ruim, nem negativa ou positiva. A religião é um amontoado de nada "especulatório". Não passa de uma forma antiquada de "explicar" coisas que o homem não entende, utilizando "métodos" ultrapassados que nunca levam a coisa alguma”.

Resposta:

Estas palavras escritas são o lugar-comum, os chavões que os cientificistas do final do século XIX, usavam quando pensavam na religião. Faz parte daquele período de belle epoque em que o ser humano tinha plena confiança na ciência como sendo sinónimo de verdade segura e inexorável, desprezando tudo o que não fosse sustentado por ela, principalmente a religião.

Mas o tempo provou que o cientificíssimo estava redondamente enganado, sendo apenas mais um exemplo de extremismos que a cabeça humana é capaz de criar. A ciência não é a verdade absoluta, e, portanto, aquilo que não é ciência não merece ser desprezada pelo simples facto de não ser ciência.

O problema é que os leitores de Marx, principalmente os que decidem rapidamente se chamar de "comunistas" e outros istas, sem muita reflexão crítica continua interpretando esses discursos anacrónicos, já que Marx fez parte daquele período.

Posso te confessar que a maioria dos meus professores de ciências sociais, história, geografia, foi todos "istas", todos multiplicadores desses discursos. Quando chegaram professores dessas matérias que, contudo, não se intitulavam assim, o contraste foi enorme, e eu me livrei da fumaça cientificista que ainda domina facilmente muitas pessoas.

Mas o facto é que as outras manifestações da busca humana pelo conhecimento e pela iluminação NÃO DEVEM SER DEFINIDOS DE ACORDO COM SUA SEMELHANÇA OU NÃO COM A CIÊNCIA. Não devem porque a ciência, como já disse, é apenas outro modo de buscar esse conhecimento, e de buscar o que chamamos de verdade.

Diante disso, defendo que a religião seja considerada não como um modo ultrapassado de EXPLICAR O QUE CIÊNCIA SE DIGNOU A EXPLICAR. Pelo contrário, a religião e a mitologia se destinam a um campo da busca humana pelo conhecimento bem diferente da busca que a ciência faz. A essência da religião de modo algum é explicar o funcionamento e a estrutura do universo. Não é por isso que a religião existe. A religião existe para responder à existência de um senso interior do Transcendente, à intuição interior que os seres humanos universalmente manifestaram de que esta existência aqui é apenas uma derivação de uma existência, de um Ser, superior e transcendente a este plano nosso de existência.

A religião fala da criação, dos seres vivos, das estruturas físicas, da geografia, da história, e do mundo não para explicar seu funcionamento, mas para mostrar o Deus, o Tão, o Uno, o Transcendente que gera, sustenta, e é revelado por cada uma das partes do universo.

Quando os monges e os religiosos de todas as categorias afirmam que vêem Deus em cada folha no chão, em cada gota de água, e em cada sorriso, não estão dizendo que leram o livro de Behe e são partidários da teoria do design inteligente. Estão dizendo simplesmente que o universo e toda esta nossa existência são parte da imagem, e um pequeno espelho do Ser supremo, indescritível, inefável, e de beleza infinita que está por trás de todas as coisas.

Paulo usa uma expressão muito bonita: τὰ ἀόρατα αὐτοῦ καθορᾶται, um modo poético de dizer que a Divindade invisível e sem forma se torna vista pelas pessoas por meio da criação.

Por falar em poesia, é essencial na defesa da religião dizer que religião é poesia. Assim como ciência é denotatividade, linguagem objectiva, e sistematização de elementos separados e definidos por um significado específico, a religião é conotatividade, linguagem poética, e uma conjunção de elementos de múltiplos significados.

Assim como uma poesia de não deve ser lida para que se tenha qualquer descrição objectiva da realidade, não devemos procurar a dignidade da religião no seu grau de semelhança com a ciência. A riqueza de significado da poesia é infinitamente maior que a de um jornal. Poesia-religião e linguagem científica-jornalística servem diferentes propósitos. A linguagem da ciência nos permite ter grande eficiência prática neste mundo, atingindo uma verdade relativa que nos permite manipular (ou pelo menos tentar manipular) cada coisa neste universo, e prever seu comportamento.

A linguagem da religião permite que nós atribuamos (ou encontremos) o significado supremo, a glória, a beleza por trás de cada coisa, atingindo o que se chama de "significado da existência", "auto-realização", "epifania" e "felicidade".

Os grandes ateus foram quase todos um pouco religiosos na medida em que demonstraram real amor pelo que faziam. O amor de Darwin pelos seres vivos, o amor de Sagan pela física, todos os conhecedores do amor são de alguma forma conectados com o senso da beleza que está por trás de todas as coisas, e que não pode ser provada ou descrita em artigos científicos.
Entretanto, muito longe de ser uma ESTRUTURA DOGMÁTICA, a religião tem, repito, uma grande semelhança com a ciência na medida em que também é a expressão de um anseio pela verdade e pela luz do conhecimento.

Os próprios religiosos do Antigo Testamento, hoje estigmatizados como sendo praticantes áridos de preceitos e sacrifícios, são um excelente exemplo de que a religião autêntica é sempre uma busca poderosa pela verdade, válida até hoje por ser um caminho próprio, diferente do da ciência, e não necessariamente oposto ao dela. Vou dar um pequeno exemplo para defender essa minha afirmação.

No Antigo Testamento, existe uma expressão hebraica de que gosto muito, e que era usada como bênção entre os israelitas: "O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti, e tenha misericórdia de ti; o Senhor levante sobre ti o seu rosto, e te dê a paz". Perceba, aqui, que o significado agregado a Deus é reiteradamente o de luz, iluminação e fulgor. Deus é apresentado aqui como a fonte suprema da luz, da vida, da verdade e da beleza. Mas a palavra "rosto" tem um peso fantástico também, na medida em que denota uma EXPERIÊNCIA PESSOAL, tão pessoal quanto duas pessoas se encontrando e se vendo FACE A FACE. E destaco, por fim, a palavra "paz", apresentada como o resultante dessa experiência. ORA, o texto acima é uma descrição linda do que significa religião: é ter a experiência pessoal de encontrar a luz, a beleza, a vida verdadeira, o significado das coisas, transcendente, resultando num estado de paz, quietude, serenidade, "nirvana". Experiência no sentindo de viver, de crer…

Portanto, em vez de MEROS DOGMAS, uma EXPERIÊNCIA PESSOAL. É isso que todas as religiões, quando praticadas de modo autêntico, proclamam. O que se poderia dizer acerca do valor da Bíblia (junto com outros livros religiosos) para propiciar essa experiência transcendental ao ser humano poderia encher muitos livros. Decido apresentar apenas mais duas ideias.

A primeira delas se encontra em Isaías. O profeta, após encontrar o Senhor em sua glória luminosa (novamente o tema da beleza e da luz), rompe numa exclamação: "Ai de mim! Estou destruído!". A palavra hebraica para "destruído" expressa muito bem a sensação de auto-aniquilação trazida pela experiência com o Deus transcendente. Essa experiência, embora de encantamento e sublimidade, tem a ambiguidade de transmitir pequenez e aniquilação; diante daquele que é o Infinito Ser, nós nos esvaziamos de modo radical. Assim como qualquer número vira nada se comparado com o infinito, nós tem a nítida sensação de não-existência quando contemplamos a Deus na experiência religiosa.

É a partir disso que fazem sentido as expressões bíblicas de novo nascimento, e de morte, como a famosa expressão "já não sou eu que vive, mas Cristo vive em mim". O encontro com Deus nos faz, de certa forma, esquecer a nós mesmos, e colocar o centro de nossa existência em Deus. É nesse contexto que podemos entender as palavras de Cristo: "negar a si mesmo", e "amar mais a Deus do que a própria vida, amar mais a Deus que à mãe, pai, esposa ou filhos", de modo que estes amores mais parecem ódio em comparação com o amor a Deus (Lucas 14.25-26), bem como o ensino veterotestamentário de "amar a Deus com todo o coração, alma e força". O amor na Bíblia está vinculado intimamente com a experiência da Beleza divina, e o amor que devotamos ao próximo e a qualquer outra coisa no universo existe por causa da imagem divina existente neles. O desejo supremo do ser humano, segundo a Bíblia, deve ser "contemplar a beleza do Senhor todos os dias da vida" (Salmo 27.4).

Perceba, portanto, como a religião, diferentemente do significado pejorativo que veio a receber no século passado, em vez de dogmatismo, é experiência viva, abordando os temas que também são abordados pela epistemologia, pela ética e notadamente pela estética.

A segunda e última ideia que julgo oportuno explicar é a ideia judaico-cristã de "salvação". Longe de meramente significar "ser colocado no céu", salvação significa a restauração do relacionamento entre Criador e criatura, permitindo que sejamos gradualmente remodelados de acordo com sua imagem. É, portanto, um RELACIONAMENTO, uma religação. Isaías e todo ser humano que veja a Deus percebe que a nossa imagem divina está distorcida por nossa alienação e desconexão em relação a Ele. E isso nos faz buscar salvação.

Na medida em que se entende que ser salvo não é ser pego por um helicóptero de bombeiros, as pessoas podem entender por que precisam de salvação. É ineficiente pensar que dizer a alguém: "você está perdido e precisa ser salvo" é capaz de ter algum efeito se a pessoa não entender de facto que ser salvo é na verdade reatar sua mente com o Deus supremo. Só aí fazem sentido as expressões "deixar de ser cego e passar a ver", é "deixar de ser morto e passar a viver", "renascer", "ser iluminado", "atingir o nirvana".

Uma expressão bíblica notável para ilustrar o significado da salvação é "Hosana", aquela mesma expressão que muitos cantam nas missas sem ter a menor noção do que significa. "Hosana" é um termo que aparece em Salmo 118, um salmo messiânico, e que significa "Salve, Senhor". É um pedido de salvação dirigido a Deus. Séculos depois, "Hosana" passou a ter também o significado de "Salve!" no sentido de louvor, exaltação. Quando Cristo entrou em Jerusalém, foi aclamado por "Hosana". Essa dupla significação é a prática da religião. PELA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA, somos levados a LOUVAR e adorar a Deus em sua beleza gloriosa. E, pela mesma experiência religiosa que revela nossa vazeis e desconexão em relação a esse Deus, somos levados a NOS APROXIMAR DELE para recebermos salvação e nos tornarmos COMO ELE. É isso que a prática religiosa faz. O homem quer se satisfazer, porém a grande maioria acaba se satisfazendo em uma falsa religião. Temos que ter cuidado com isso… Não podemos confinar em nossa consciência, como se diz João Calvino: Calvino: "A mente de um homem é como um depósito de idolatria e superstição; de modo que, se o homem confiar em sua própria mente, é certo que ele abandonará a Deus e inventará um ídolo, segundo sua própria razão". Muitos que negam a fé verdadeira, acaba indo em busca de falsa religião, veja o que C. H. Spurgeon diz: “Quando a antiga fé desaparece e o entusiasmo pelo evangelho é extinto, não é surpresa que as pessoas busquem outras coisas que lhes tragam satisfação. Na falta de pão, se alimentam com cinzas; rejeitando o caminho do Senhor, seguem avidamente pelo caminho da tolice”.

Sola fide

2 comentários:

Dinis Salaviza disse...

Estou a ver o seu blogue pela primeira vez. Parabèns é muito bom!

irei adiciona-lo nos links do meu blogue.

Luan Marçal disse...

Muito obrigado.

O teu blog também é fixe, um blog de um verdadeiro nacionalista.

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